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segunda-feira, 21 de junho de 2010

O dia da morte de Saramago

Sexta-feira passada, 18 de junho, tomei um susto. Morreu o escritor José Saramago. Sim, sei que estava idoso e que a saúde já vinha dando sinais de alerta, mas não estava preparada. Achava, ainda, que haveria mais uns dois ou três romances inéditos dele. Juro. Não esperava nenhuma obra-prima, é verdade... Até porque, a meu ver, Saramago foi pródigo em obras-primas. Ok, a rigor, só pode haver uma "prima", mas eu jamais pude me decidir. Se bem que, na verdade, tenho sim o meu "saramagozinho" preferido: Todos os nomes. Para mim, esse é o melhor de todos.

 Se é preciso escolher, fico com este

O personagem José, simplesmente José, como o do poema de Drummond (com o qual o romance parece dialogar o tempo inteiro), é de uma beleza singela. Ele é um simples escriturário de uma espécie de cartório português. Seu passatempo, no início da história, é colecionar fotos e informações sobre famosos. Entretanto, em determinado momento, a vida de uma mulher anônima lhe chama a atenção e ele deixa as celebridades de lado, passando a colecionar dados de anônimos, resgatados da burocracia do dito Registo Civil. Nas palavras do autor: "Que este romance possa ser entendido como um ensaio sobre a existência - talvez. [....] Que o livro possa ser visto como uma indagação sobre a identidade, sim, mas não sobre a identidade própria. O que aqui se procura é o 'outro'".

Não preciso nem dizer que recomendo deveras a leitura deste livro. Desde que o li, tento convencer meus amigos leitores de que este é um livro essencial. Infelizmente, jamais encontrei alguém que quisesse, principalmente, debater a questão identitária proposta por Saramago neste livro. Quem sabe agora? Creio que aproveitarei o ensejo, já que não haverá novos romances do Saramago, para reler este livro. E aí? Alguém me acompanha? ;-)

Deixo aqui uma crónica "drummondiana" de Saramago, pouco conhecida, publicada no seu livro A bagagem do viajante:



“E agora, José?”


Há versos célebres que se transmitem através das idades do homem, como roteiros, bandeiras, cartas de marear, sinais de trânsito, bússolas – ou segredos. Este, que veio ao mundo muito depois de mim, pelas mãos de Carlos Drummond de Andrade acompanha-me desde que nasci, por desses misteriosos acasos que fazem do que viveu já, do que vive e do que ainda não vive, um mesmo nó apertado e vertiginoso de tempo sem medida. Considero privilégio meu dispor deste verso, porque me chamo José e muitas vezes na vida me tenho interrogado: “E agora, José?” Foram aquelas horas em que o mundo escureceu, em que o desânimo se fez muralha, fosso de víboras, em que as mãos ficaram vazias e atónitas. “E agora, José?” Grande, porém, é o poder da poesia para que aconteça, como juro que acontece, que esta pergunta simples aja como um tónico, um golpe de espora, e não seja, como poderia ser, tentação, o começo da interminável ladainha que é a piedade por nós próprios.

Em todo o caso, há situações de tal modo absurdas (ou o que o pareceriam vinte e quatro horas antes), que não se pode censurar a ninguém um instante de desconforto total, um segundo em que tudo dentro de nós pede socorro, ainda que saibamos que logo a seguir a mola pisada, violentada, se vai distender vibrante e verticalmente afirmar. Nesse momento veloz tocara-se o fundo do poço.

Mas outros Josés andam pelo mundo, não o esqueçamos nunca. A eles também sucedem casos, desencontros, acidentes, agressões, de que saem às vezes vencedores, às vezes vencidos. Alguns não têm nada nem ninguém a seu favor, e esses são, afinal, os que tornam insignificantes e fúteis as nossas penas. A esses, que chegaram ao limite das forças, acuados a um canto pela matilha, sem coragem para o último ainda que mortal arranco, é que a pergunta de Carlos Drummond de Andrade deve ser feita, como um derradeiro apelo ao orgulho de ser homem: “E agora, José?”

Precisamente um desses casos me mostra que já falei demasiado de mim. Um outro José está diante da mesa onde escrevo. Não tem rosto, é um vulto apenas, uma superfície que treme como uma dor contínua. Sei que se chama José Júnior, sem mais riqueza de apelidos e genealogias, e vive em São Jorge da Beira. É novo, embriaga-se, tratam-no como se fosse uma espécie de bobo. Divertem-se à sua custa alguns adultos, e as crianças fazem-lhe assuadas, talvez o apedrejem de longe. E se isto não fizeram, empurraram-no com aquela súbita crueldade das crianças, ao mesmo tempo feroz e cobarde, e o José Júnior, perdido de bêbedo, caiu e partiu uma perna, ou talvez não, e foi para o hospital. Mísero corpo, alma pobre, orgulho ausente – “E agora, José?”

Afasto para o lado os meus próprios pesares e raivas diante deste quadro desolado de uma degradação, do gozo infinito que é para os homens esmagarem outros homens, afogá-los deliberadamente, aviltá-los, fazer deles objecto de troça, de irrisão, de chacota – matando sem matar, sob a asa da lei ou perante a sua indiferença. Tudo isto porque o pobre José Júnior é um José Júnior pobre. Tivesse ele bens avultados na terra, conta forte no banco, automóvel à porta – e todos os vícios lhe seriam perdoados. Mas assim, pobre, fraco e bêbedo, que grande fortuna para São Jorge da Beira. Nem todas as terras de Portugal se podem gabar de dispor de um alvo humano para darem livre expansão a ferocidades ocultas.

Escrevo estas palavras a muitos quilómetros de distância, não sei quem é José Júnior, e teria dificuldade em encontrar no mapa São Jorge da Beira. Mas estes nomes apenas designam casos particulares de fenómeno geral: o desprezo pelo próximo, quando não o ódio, tão constantes ali como aqui mesmo, em toda a parte, uma espécie de loucura epidémica que prefere as vítimas fáceis. Escrevo estas palavras num fim de tarde cor de madrugada com espumas no céu, tendo diante dos olhos uma nesga do Tejo, onde há barcos vagarosos que vão de margem a margem levando pessoas e recados. E tudo isto parece pacífico e harmonioso como os dois pombos que pousam na varanda e sussurram confidencialmente. Ah, esta vida preciosa que vai fugindo, tarde mansa que não será igual amanhã, que não serás, sobretudo, o que agora és.

Entretanto, José Júnior está no hospital, ou saiu já e arrasta a perna coxa pelas ruas frias de São Jorge da Beira. Há uma taberna, o vinho ardente e exterminador, o esquecimento de tudo no fundo da garrafa, como um diamante, a embriaguez vitoriosa enquanto dura. A vida vai voltar ao princípio. Será possível que a vida volte ao princípio? Será possível que os homens matem José Júnior? Será possível?

Cheguei ao fim da crónica, fiz o meu dever. “E agora, José?”

(in: SARAMAGO, José. A bagagem do viajante. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 5. ed. p. 33-35)



PS: Fica aqui minha homenagem não só a Saramago, mas a meus saudosos avós Arivaldo Fontes e Murillo Andrade, igualmente "marcados" pelo dia 18 de junho. O primeiro, nascido em 18 de junho de 1923. O segundo, falecido em outro 18 de junho, de 2002. Que suas histórias de vida sobrevivam aos labirintos da burocracia, na memória de seus descendentes.

3 comentários:

Juliana Maria Carvalho disse...

Eu não li muitos livros do Saramago, apenas dois e muitos trechos de vários livros durante o curso. Mesmo assim lamentei muito a morte dele não só por ser o escritor que era, mas um ser humano corajoso e digno, que defendeu suas ideias até o fim. Mesmo não concordando com algumas delas, é impossível não reconhecer um homem honrado, em um mundo onde a honra está cada vez mais escassa. Mas fiquei impressionada tb com essa coincidência de datas, hein? Na minha família, o dia 16 reina soberano. Mas os meses variam...

Beatriz Fontes disse...

Pois na minha família o lance é com o 18 mesmo, inclusive em outros meses... Nem eu escapei! Já que nasci num 18, de setembro. ;-)

Juliana Maria Carvalho disse...

Pra vc ver, eu não nasci no dia 16, mas nasci no dia 1/6! Mamãe 16/03, Lulu 16/11, Pedrinho 16/10! Mamãe se separou de papai em 16/01! E por aí vai...