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quinta-feira, 19 de abril de 2012

Good morning, Mr. Murphy!

Você precisa fazer um exame de sangue, mas não acha o pedido em lugar algum. O tempo vai passando, a data da próxima consulta - na qual você deverá apresentar o exame - se aproxima. Daí, você resolve apelar, liga para o médico, explica à secretária qual a situação e ela diz que é só passar lá no dia seguinte de manhã para pegar um novo pedido. Já estará prontinho, esperando...

Então, você vai dormir em jejum. Acorda, se arruma e passa no consultório do seu médico... E descobre que ele errou seu sobrenome. Pronto! Murphy deu as caras. Você devia era ter ficado em casa, remarcado a consulta... É certo que, a partir daí, tudo vai desandar. Bobagem? Vejamos:

De posse do novo pedido, que precisou que o médico terminasse a consulta que estava em andamento no momento em que você chegou ao consultório, você segue para o laboratório. Ele está lotado, obviamente. Você pega uma senha e percebe que há apenas seis pessoas na sua frente. Ok, não é tão ruim. Você ainda tem quase uma hora até que o jejum torne-se excessivo para a realização do exame de sangue. O que fazer? Aguardar e torcer para que tudo corra rápido, claro.

Rápido? Não, Murphy só acelera o que não presta... Na entrada do laboratório, um cartaz avisa que os que têm horário marcado NÃO precisam de senha. Resultado: as DUAS atendentes não dão conta da demanda, ora. Em meia hora de espera, apenas dois números das senhas são chamados. O que fazer senão desistir? Em quinze minutos, você já não poderá mais fazer a coleta. Você ainda nem entregou o pedido! Até chamarem para o exame propriamente dito, imagine o tempo.

É hora de levantar, zonza de fome. Você se dirige a uma atendente para pegar um formulário de (in)satisfação e escreve um rápido desabafo. Ao colocar a reclamação na caixinha, você vê seu número ser chamado: a isso se dá o nome de "requintes de crueldade". Saia daí, logo! É preciso comer alguma coisa e, saindo do laboratório, você vê o Palheta quase sem fila. Pede um espresso e uma broa de milho, espera. Ao seu lado, um grupo de senhoras conversa sobre a vida. Aparentemente, o assunto surgiu ali, elas nunca se viram antes, mas as frases são pesadas: "viver dá câncer" é o ápice. Ok, baita dia auspicioso esse...

Você engole o café e come a broa enquanto ouve as frases de efeito das senhorinhas... Vai para o Metrô, pois é preciso correr para o trabalho, afinal. Seu cartão, como era de se esperar, tem saldo insuficiente e há fila tanto na bilheteria quanto na única máquina de recarga. Você espera, já achando tudo meio engraçado. Afinal, há uma certa graça nisso tudo, não? O jeito é relaxar e ir para a plataforma esperar o trem.

A espera nem demora tanto. Opa! A coisa tá melhorando...? Não, claro que não. Um sujeito careca e capoeirista (é o que sugere a camiseta que ele veste) parece falar sozinho. Na verdade, ele está ao telefone, mas com aqueles fones de ouvido ridículos que permitem que ele não use as mãos. Ele está no meio de uma DR com uma tal de Bárbara, que ele não para de recriminar um só segundo e parece que vai viajar, mas ele tinha passado no dia anterior para se despedir e ela não foi carinhosa o bastante... Você pensa: ok, daqui a pouco a ligação cai. Não, querida, cairia se fosse o SEU telefone. O do moço continua firme e forte, assim como a DR, que dura pelo menos até a Central. 

Você sempre tem um livro na bolsa, seu ipod e os fones de ouvido, certo? Errado: quase sempre. Você poderia ser como a pessoa que ouve som sem fone do outro lado do vagão, mas não, ainda lhe resta algum senso de civilidade. Qual a solução? Respire fundo, a Carioca está chegando. Desça do vagão sem olhar para os lados, não pare no meio do caminho... Exceto para esperar o sinal, que acabou de fechar, abrir novamente. E prepare-se para um excelente dia de trabalho, porque... AINDA não é sexta-feira!




terça-feira, 17 de abril de 2012

Vida de Maria

(ou Empregada de cama e mesa)


Escrito em 6 de maio de 1996.

Maria, cadê meu café? Cadê meu jornal?
E as minhas meias? Meus sapatos? Minha camisa?
Minha calça? Cadê??
Ei, Maria, deixa de lerdeza!! Maria, sujei o chão!
Maria, vem limpar isso aqui! Como é que é? Não vai limpar, não??
Arruma essa zona, sua imprestável!!
Maria!!! Onde estão minhas chaves!?
Hein, Maria!? Cadê???
Maria, deixa essa novela e vem fazer minha comida!
Maria, deixa de ser maria-mole, sua vadia!
Maria, você está pálida... Maria, isso é gripe!?
Maria, eu não posso ficar doente, pega uma vitamina pra mim!
Maria!! Você demora muito, sua estúpida!
Maria, cala a boca dessa criança!! Não tô conseguindo ouvir o jogo!
Maria, a Mariazinha tá muito magrinha...
Maria, nem como mãe você presta! Você é um fracasso!
Você não serve pra nada, mulher!
Vai preparar meu banho, sua vadia!
MariaaaAAA!!!! Prepara a cama!
Maria, vem deitar! Tira essa roupa!
Mas vai tomar um banho antes, que você está um nojo...
Mas, não gasta água, não, e vê se toma banho frio!
Maria, você tá puro osso! Que nojo!
Maria, que perna final Que peito caído!
Assim não dá! Amanhã mesmo eu procuro outra!
Nem como muiher você serve!
Pode arrumar suas coisas!
E leva essas crianças nojentas...
Eu sei, são meus fiihos também...
Façamos o seguinte: te empresto o dinheiro do ônibus!
Maria! Maria? Maria!? Ei, responde!!!
Maria!!! Fala comigo!!! Querida?
Ei! Fala! Sua vagabunda! Logo no meu colchão?
Sai daí! Você tá meio fria... Hummmmmm...
Sabe que assim você fica gostosinha?
Vem cá, vem! Hummmmm...





sábado, 7 de abril de 2012

Conto de natal

Escrito em 28 de dezembro de 1998

Aquela mulher sim sentia dor, intrínseca. Uma dessas dores que secam as tripas, ressecam o ventre e não explicam o porquê. Doía na profundeza de suas entranhas e um grito mudo rasgava sua garganta e engasgava em soluço seco, sôfrego, delirante.

Mas não havia explicação e ela era apenas mais uma mulher em um quarto úmido a sentir dor. Uma entre milhares espalhadas pela cidade, ou talvez pelo bairro. Quem sabe no mesmo prédio não havia mais uma, semelhante?

Era natal e era uma mulher e era sozinha e o quarto vazio era úmido e escuro, apesar da grande janela com vista para o mar em plena Zona SuI do Rio de Janeiro. Tantos gostariam tanto de uma janela assim para ver o mar! Tantos se satisfariam com tão pouco. Pouco?

Aquela mulher já não via o mar, os vidros da janela eram foscos. A luz do sol incomodava tanto pela manhã! Maresia com cheiro de mofo. E os vizinhos de elevador, cachorro em punho, bicicleta a postos... eram tão felizes... Horas ao cair da tarde tomando água de coco nos quiosques da orla e ela nunca foi sequer convidada. Gente metida. De certa forma era bom manter distância, sem fofocas, preservar sua privacidade. Assim ninguém nem chegava perto. Por falta de coragem?

E era natal. Quando menina chegou a ganhar alguns presentes, mas começou a trabalhar, e trabalhar era importante. Sua família era pequena, até que acabaram morrendo, era o natural. E ela não comprava presentes, não tinha mesmo para quem dá-Ios. Nada ganhava, tampouco. Também, de quem ganharia? Mais um natal, e nem o carteiro passava pedindo a caixinha de natal.

Alias, não fossem o porteiro e a faxineira aparecerem vez ou outra, capaz de pensarem que o apartamento estava vazio. Todo fim de semana era a mesma coisa, viva o desespero dos que dependem da tv. E agora, um mês inteiro: férias enlouquecedoras. Antes passar o dia inteiro fazendo contas em uma sala gelada. Ganhava bern, era competentíssima. Mas não tinha trabalho no fim de ano. Então... férias.

Havia já uma semana, a dor era insuportável. E nenhum médico explicava direito e ela não explicava também direito a nenhum deles. Onde doía? Ela não saberia responder. Os médicos, então vinham com uma história de análise, essas besteiras, e ela nunca tentou. Um médico um dia descobriria a verdade. Afinal, obviamente, ela devia ter era câncer... Sim... Câncer? Lógico, só podia ser câncer! Aquela tia velha tinha mesmo morrido de câncer. Mas, então, não havia mais jeito... Ela ia morrer logo, tinha câncer.

Tomou, portanto, uma atitude. Era natal e a janela enorme estava lá, e ela abriu os vidros foscos e dava para ver o mar. Não teve dúvidas, escreveu um bilhete no espelho com um batom velho vermelho-cor-de-escritório que ela nunca ousou usar no trabalho: "Voo de vista para o mar, tentando me libertar deste câncer que acaba comigo”. Achou brega, mas daria muito trabalho Iimpar e reescrever. Foi novamente até a janela e pulou, sem pestanejar. Talvez tenha experimentado um leve sorriso nos lábios, apenas. Pulou do décimo andar e era natal e ela sentia dor e era sozinha e “morreu na contramão atrapalhando o tráfego”, tocava ao longe numa vitrola atemporal.

No seu apartamento, agora iluminado, nada: apenas o vazio, maior que antes. No banheiro, um bilhete no espelho falando de um câncer... Que câncer? Autópsia: “ausência de tumores, malignos ou benignos”. Notícias nos jornais: nenhuma. Sequer um obituário ou anúncio fúnebre. Apenas mais uma mulher sozinha pulou de um apartamento vazio na Zona Sul do Rio e era natal e os vizinhos pararam para olhar...


Mas e se essa mulher não se matasse assim?

E se ela abrisse a janela, olhasse o sol, visse o mar e resolvesse apenas dar urn mergulho? Aí, vai que ela fecha a porta, de maiô, e atravessa a rua e é atropelada. Não, é natal e, se não há suicídio, atropelamento é desperdício... Pouparia o trabalho dela e traria uma puta crise de consciência para o pobre motorista. Então, ela atravessa e pisa a areia e entra no mar e... a dor sumiu! Tomou Doril? Péssimo.

Então, talvez, esquece isso e volta para a janela aberta e ela pula e cai no toldo e não morre, só fica toda quebrada e vai para o hospital e é internada em uma clínica... Louca, completamente. Falando num câncer imaginário, sentindo a dor cada vez mais forte... Mas aí era a dor da pancada, do tombo... Suicida incompetente. Aí ela se enforca com seus lençóis... Não, meio desenho animado. Ou, de repente, vira uma artista plástica bem-sucedida, reconhecida em todo o mundo... Ou talvez, ao tentar morrer enforcada, quebra a perna... ou... morre de câncer... ou... melhor deixar como está.