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segunda-feira, 14 de maio de 2012

Olga e o taxista

Escrito em 16 de agosto de 2011.


Todo sábado, Olga ia almoçar na casa de sua filha. Acordava cedo, alimentava seu gato, tomava seu café da manhã e começava a se aprontar pra sair. Levava horas nisso! Escolhia sua roupa com esmero, os acessórios e o sapato que usaria. Já havia tentado deixar tudo pronto de véspera, mas nunca dava certo: acabava mudando tudo, já que seu estado de espírito já não era o mesmo do dia anterior.

Os cuidados que tinha com seu cabelo, grisalho, eram um espetáculo à parte. Levava com o shampoo e o condicionador apropriados, enrolava mecha por mecha em bóbis de plástico e deixava secar naturalmente. Raramente apelava para o secador. Só tirava os bóbis depois de vestida e devidamente maquiada. Claro, a maquiagem também era um capítulo importantíssimo em sua rotina diária. No sábado, então!

Olga tinha muito orgulho de sua filha única, mas nunca soube como se aproximar. Nunca foram muito próximas e, com o passar do tempo, foi vendo as chances de estreitar laços com Gilda se esvaírem por entre seus dedos. Por isso, os almoços de sábado eram tão especiais. Sabia que era preciso caprichar, causar a melhor impressão possível. Queria que sua filha se orgulhasse por ter uma mãe ao menos elegante, já que não tinham mesmo muito em comum.

De quem seria a culpa? Talvez de ninguém, mas a verdade é que nunca perdoou Brígida. Quando jovens, eram melhores amigas. Unha e carne. Não se desgrudavam para nada. E isso continuou mesmo depois do casamento de Olga com Amadeu. Brígida continuou ali, sempre presente. Não foi à toa que foi escolhida madrinha de Gilda.

Brígida nunca casou. E Amadeu, o marido de Olga, morreu jovem. Gilda contava apenas 4 anos quando ficou órfã de pai, mas nem sentiu tanto porque a dinda Brígida logo veio morar com ela e a mãe. Durante os primeiros meses, o arranjo funcionou bem. Brígida era muito prática, logo botou ordem na casa. Todas as resoluções da casa deveriam passar por seu crivo e isso incluía controlar todos os passos de Olga e Gilda.

Com Gilda, era mais flexível. A menina cresceu sem maiores traumas e teve na madrinha um porto seguro. Era como se esta desempenhasse o papel do pai que ela não tinha. As saídas, os namoros, tudo era negociável. Mas o mesmo não se dava quando o assunto era Olga.

Pobre Olga! Prisioneira em sua própria casa! Não podia sair sozinha, mal podia assomar ao portão para ver o movimento. Brígida a recriminava por qualquer coisinha, sob o pretexto de que devia dar um bom exemplo para a menina. Ela não entendia a mudança de comportamento de sua melhor amiga, antes tão companheira. Sentia-se fraca e confusa demais para reagir.

Foi então que, aproveitando uma rara viagem de Brígida, Olga travou contato com um rapaz da vizinhança. Sabia que ele era casado, mas estava havia tanto tempo sem ser cortejada que isso não lhe pareceu um problema. Seu nome era Carlos e era bem mais velho que ela. Dizia que não amava mais sua esposa e que só mantinha o casamento fracassado por conta das aparências. Oh, palavras sedutoras! Não entendia por que sempre ouvira Brígida referir-se a ele como um bronco, um grosseirão… Aquela força de Carlos lhe parecia tão apaixonante! Achava-o dotado de um vigor tão extraordinário! Era careca, é verdade, mas a pele dourada de sol, a compleição forte, os quase dois metros de altura… Ah, que homem! Que homem! Até hoje seu corpo estremece ao pensar nele. Mas ali começou sua perdição.

Olga, tão pouco acostumada ao mundo, vivendo em clausura havia sabe-se lá quanto tempo, cedeu às investidas de Carlos. Achou que ele, de fato, seria dela, ainda que ele jamais largasse a esposa. Acreditou piamente que conseguiria esconder tudo de Brígida e, principalmente, de sua filha, Gilda. Ledo engano: logo uma vizinha a viu trocando bilhetes e carícias furtivas com Carlos no portão. E o mundo, como era de se esperar, veio abaixo.

A mulher de Carlos, que sabia muito bem o marido que tinha, logo deu um jeito de impedir que ele sequer encontrasse novamente a amante. E Brígida, quando soube, não sossegou enquanto não viu mãe e filha completamente afastadas. Olga foi pintada como uma devassa, uma criatura sem escrúpulos, alguém que não deveria jamais ser responsável pela criação de uma mocinha. Gilda, por conta disso, foi parar no internato e jamais perdoou sua mãe. Nem tanto pelo caso com o homem casado, que ela acabou entendendo, mas por sua postura tão submissa perante os mandos e desmandos da madrinha (que ela adorava, porém).

A relação de mãe e filha nunca se refez. Brígida continuou presente na vida de Gilda por todos esses anos. Hoje, em sua velhice, é ela quem ocupa o quarto de hóspedes. Porque Gilda tem certeza de que somente ela poderá lhe ajudar na criação dos gêmeos. Afinal, ela e o marido nunca param em casa. E sua mãe, bem, sua mãe é uma dondoca imprestável que nunca soube lidar com crianças.

Por isso, Olga vive em um asilo. Luxuoso, é verdade. Um lugar em que é bastante paparicada e onde tem muita independência, mas ainda assim um asilo. Sua filha não lhe deixa faltar nada, mas nunca vem lhe visitar. O máximo que lhe concede é este almoço de sábado, única ocasião em que Brígida permite que ela se aproxime da filha e dos netos. Aos sábados, Brígida vai visitar a casa de uma amiga em Paquetá. Não sem antes deixar tudo preparado, porém. Dá claras instruções à empregada para impedir que qualquer conversa seja travada por mais que alguns minutos durante o almoço. E, ao voltar, pede-lhe um relatório completo do que foi dito e feito ao longo do dia.

Sempre que termina de se arrumar, Olga aguarda que a cooperativa lhe envie um táxi. Entretanto, este sábado, é informada de que não há carros disponíves. Parece que a chuva do dia anterior trouxe tantos estragos que boa parte dos motoristas preferiu não arriscar sair de casa. Tiraram o sábado para descansar, ou talvez seja porque o horizonte anuncie um temporal ainda mais terrível para logo mais.

Então, sem mais remédio, Olga caminha até a rua em busca de um táxi. Não pode perder o almoço na casa de sua filha! Precisa ver seus netos! Tão lindos e tão distantes… Quase não passam carros, muito menos táxis. E estes, quando passam, levam passageiros. Até que faz sinal para um que parece vazio. O carro não é muito novo, mas também não está caindo aos pedaços. O motorista, um senhor pouco mais jovem que ela, tem uma boa cara. É gordo, risonho, falastrão. Uma simpatia! Vão conversando sobre amenidades por todo o caminho.

Incentivada pelo bom humor do motorista, Olga contou sobre a importância do almoço com sua filha. Não entrou em detalhes. Não falou de sua mágoa com Brígida. Não falou de Carlos, nem nada parecido. Mas o motorista, talvez porque ela tenha deixado transparecer sua tristeza, ou talvez por simples vício profissional, lhe entregou seu cartão. Nele constava seu nome e seu telefone. Olga ficou atônita quando lhe ouviu dizer:

— Olha, dona, a senhora não leve a mal o que vou dizer. Este é o meu cartão para o caso de a senhora algum dia precisar de meus serviços. Sou matador profissional, tenho mais de 20 anos de experiência e mais de 50 mortes nas costas. Esta aqui é minha companheira – e abriu o porta-luva, de onde sacou uma pistola.

Olga pegou o cartão, tentando disfarçar seu nervosismo o máximo possível. Sua cabeça girava. De repente, teve medo: medo de que aquele homem soubesse onde sua filha e seus netos moravam! Começou a tramar um plano para se livrar daquela situação inconveniente e acabou pedindo para que ele a deixasse a duas quadras de seu destino. Curiosamente, o local onde antes ficava a casa de Amadeu, onde hoje há um prédio. Fingiu tocar o interfone e ficou esperando pacientemente que ele se fosse. Só então, começou a caminhar em direção à casa da filha. Estava um pouco atrasada, precisava correr.

O cartão queimava em sua mão… E as últimas palavras ditas pelo motorista ainda ecoavam em sua cabeça: “Garanto um serviço limpo, rápido e discreto. E, para a senhora, faço um precinho camarada. Gostei da senhora. E gosto muito do meu trabalho, também. Então, não me incomodo de dar desconto: o importante é ver a satisfação do freguês. É só me dizer quem a senhora quer apagar que eu dou um fim na pessoa”.

Olga, decididamente, precisava correr. Este, certamente, seria o último sábado em que ela seria visita na casa de sua filha. Tinha certeza de que logo deixaria o asilo, pois sua presença ali seria necessária. Mal podia esperar para tomar conta dos netos, vê-los crescer dia a dia. Faria, certamente, algumas mudanças naquele quarto de hóspedes... Bastava apenas que ela desse um telefonema ao chegar. Pobre Brígida! Aquela região da Praça XV é mesmo muito perigosa…

Ah, esses taxistas...


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